sábado, 20 de agosto de 2016

9 | O roubo da razão

Fui, recentemente, vítima de um assalto.
Pois então andava eu, tranquilamente atarefada a viver a minha vida, que tão cuidadosamente organizada sempre esteve, quando sem qualquer notificação ou aviso prévio me vi desprovida de Razão.
Tão simples quanto lhe digo: num momento lá estava ela, bem arrumadinha no local que lhe estava destinado, e no momento seguinte já lá não estava! No seu lugar, vá-se lá imaginar, o medíocre ladrão deixou tão somente uma jarra de flores, como se me julgasse incapaz de distinguir o Raciocínio Lógico de um monte de esgravilhos verdes, já eles próprios meios murchos, como se até as plantas condenassem uma ação tão descabida. 
É com alguma vergonha que confesso que não dei logo pela sua falta, e se vossas excelências também já tiveram o infortúnio de passar por algo semelhante, então sabereis que não podem julgar o facto de alguém a quem roubaram a Razão não conseguir pensar racionalmente a ponto de notar a sua ausência. 
Mas assim que consegui, nuns breves momentos de lucidez, identificar o furto, não perdi tempo em dirigir-me à esquadra mais próxima para relatar o acontecimento. 
- Senhor Agente, roubaram-me a Razão. - Expus sem mais delongas, não fosse eu esquecer a razão que me havia levado ali. 
- Pode descrevê-la, por favor? 
- Certamente, pois então cá vai: a minha razão (e não sei se são todas iguais) tem pernas compridas para percorrer os caminhos tortuosos da ilusão, tem braços igualmente longos (não, não é uma preguiça, valha-me deus) para me segurar e impedir de cair nas graças da fantasia, uns olhos grandes e atentos escondidos atrás de uns óculos de massa e usa sempre uma bata de cientista, só para o status. 
- Quando deu pela falta dela? - Perguntou o polícia, com ar de quem reprime a vontade de julgar alguém que se deixa enganar a ponto de perder a Razão. 
- Hoje mesmo, Senhor Agente. Hoje mesmo eu tive vontade de ... ai por amor de Newton, até me custa falar disto, mas hoje mesmo eu tive vontade de desenhar corações nas pontas dos i's. 
- E que mais? 
- Também... ai que vergonha a minha... também escrevi um poema. E dancei à chuva. E... por favor, não me repreenda, mas ouvi uma música do Ed Sheeran e pensei que poderia ser sobre mim. 
Ele escrevinhou nervosamente num bloco e fez uma pausa como quem procura preparar-me para uma grande revelação. 
- Minha Senhora, a sua Razão foi roubada e substituída por uma jarra de flores? 
- Foi sim, isso mesmo! - Respondi com o entusiasmo de quem vê reconhecido um mal partilhado. 
O polícia uniu as mãos sobre o balcão e olhou-me num misto de pena e compaixão: 
- Dona Violet, fique pois então sabendo que já identifiquei o culpado: quem lhe roubou a Razão foi o Amor. 
- PELA SANTÍSSIMA TEORIA DA RELATIVIDADE! - Gritei dramáticamente, segurando-me ao balcão para não cair. Sabia, por relatos de gente próxima, que esse maldito já havia andado a fazer das suas cá na terra, até porque a Dona Elsa da mercearia mandou pintar o tolde de cor-de-rosa, mas a gente sempre tem na ideia que isso é coisa de acontecer aos outros e não a nós, principalmente a mim que sempre fui leal partidária da Lógica e nunca da Afeição. 
- Que faço eu para reaver o bem que me foi levado, Senhor Agente?! - Perguntei, aflita. 
Ele comprimiu os lábios e eu percebi que nada que pudesse fazer iria trazer de volta o que me fora tirado: quando o Amor tira, ele não volta para devolver. (imbecil, não é? E não há ninguém neste país que o meta atrás das grades?!) 
- E o que faço às flores? 
- Regue-as ou deite fora. -  Instruiu ele antes de voltar costas e dedicar a sua atenção a um caso de sequestro de um gato às riscas. 
Então, chegada a casa, lá eu peguei na prova do crime com cheiro a rosas e atirei-a pela janela, sem dó nem piedade, acabando por ir estatelar-se contra o tolde cor-de-rosa da Dona Elsa. 
Depois sentei-me, e esperei. 
Pode ser que por milagre ou delicadeza, o Amor volte para devolver o que me roubou, e eu possa continuar, tranquilamente atarefada, a viver sem Afeição, mas capaz de resolver problemas de matemática. 

Fim. 

Violet Reason. 

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