sábado, 20 de agosto de 2016

21 | Eu não escrevo

Eu não escrevo.
Que é isso de escrever senão ordenar gramática e sintacticamente um conjunto de frases com sentido?
Eu não quero fazer nascer frases com sentido.

 Eu não quero ser mãe de textos linguísticamente corretos.
Tomem um til: ~ 
Só porque eu quero pôr um til no meio do texto. 
~

Não me digam que o que eu faço é o mesmo que fazem os que escrevem decretos ou notificações.
Não me digam que o faço é escrever, porque o que faço é tão mais do que conduzir caracteres em linhas perfeitas, da esquerda para a direita, com letras maiúsculas no início das frases.
E nos nomes próprios, como Abril.
E agora nem isso.
Eu não quero ter compromissos com acordos ortográficos.
Nem qualquer outro tipo de compromissos, porque a pena - figurativa - com que (não) escrevo é a mesma que uso - figurativamente - para voar,
Virgula. Sim, eu quero acabar a frase anterior com uma virgula.
Tratarei de me confessar no fim do mês.

Eu não escrevo, eu entorno-me no papel
(Sem ponto final)
Porque o meu entornar-me no papel não tem fim.

Não! Entornar é leve, entornar é morno, e eu não sou leve e morna.
Escrever é um verbo quente e em mim há gelo a mais.
Partir.
Eu não escrevo, eu parto-me no papel.
Embato nele com o impulso selvagem de quem não tem mais impulsos selvagens na vida senão os que nascem do verso, não escrito, mas partido.
E em cada fragmento estou eu, ou aquilo que pensei de mim.
Eu não sei ver-me além desses pedaços rachados em papel de coisas que eu penso ser eu.
Por isso, eu não escrevo, fragmento-me nas palavras, disperso-me nelas e perco-me.
Em mil.
Talvez em mais de mil.
Talvez em mais de mim.


Mas eu não escrevo.
Escrever seria matar os versos que andam dentro e em torno de mim, que nem sempre os vejo porque os versos só se vêm ao microscópio.
E eu nem tenho um microscópio.
Mas quando, por um acaso maravilhoso, eu lá encontro um fácil de agarrar,
 logo o atiro à folha, estilhando-o.
Eu não escrevo, eu estilhaço-me.
E dói. Da mesma forma que deve doer de toda a vez que algo se parte, como um espelho.
Ou um coração.

- Quer dizer, eu nem sei, 
eu nem tenho um coração para saber a dor que nele se dá quando se parte - 

Eu nunca ouvi um espelho queixar-se por partir.
Por isso também não o farei.
Além disso:
É só partida que me sinto inteira.
É só neste (não) escrever que eu me perco.
e perder-me é bom, porque não saber voltar é caminhar para nenhum lado.
E nenhum lado é o meu lugar.

Eu não escrevo.
É assim, a assim será.

Eu já não sei assinar. 

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