sábado, 22 de outubro de 2016

Loja de Iogurtes (2013) | Parte 2


            - ROGÉRIO, É AGORA! TRAZ A MÁQUINA!
            Quem, porventura, entrasse no quarto de hospital naquele momento, iria ri-se da situação: Isabel contorcida de dores, com uma bata florida, estava sentada numa mesa comprida com dezenas de iogurtes cheios de cores e com uma colher na mão.
            - Sorri! – Pediu Rogério, inchado de orgulho.
            E Isabel meteu a colher à boca, saboreando a o primeiro de muitos iogurtes que tinha pela frente, e cruzou os dedos para que a sua pequena Ísis viesse ao mundo o mais rápido possível. Na sala ao lado, uma outra mãe, com uma bata igualmente florida e uma cara igualmente de sofrimento, pegava no último dos iogurtes, cruzando também os dedos por baixo da mesa, desejando com força a maior das felicidades para o filho Eurico.
~
            Quinze anos mais tarde, uma rapariga de uma palidez marmórea, cujo rosto estava salpicado de pequenas sardas, endireitava a sua longa trança ruiva – que lhe chegava à parte de trás dos joelhos! – utilizando o vidro de um carro como espelho.
            - Eurico, se não esperas por mim juro que vomito o iogurte da paciência e parto-te um dente. – informou calmamente a jovem Íris, voltando os olhos amarelados em direcção ao amigo, que batia o pé nervosamente no muro da escola. Ele era extraordinariamente alto, um tanto quanto desengonçado, com o cabelo desalinhado e uns óculos de massa vermelha.
            - Sinceramente, Iss, cada vez tenho mais certeza que a tua mãe cuspiu algumas gramas de Sousa para debaixo da mesa do hospital, principalmente no que respeita à simpatia. Além disso, não me parece que a paciência tenha sido escolhida para ti…
            Mas Iss já não o ouvia, corria desvairadamente em direcção a casa, deixando o seu vestido rodado esvoaçar ao vento, de tal forma que Eurico teve de levar as mãos aos olhos para não ver as cuecas amarelas que a amiga levava. Pegando na mala de couro oferecida pelo pai, Eurico correu atrás dela, um pouco desequilibrado, pois tanto quanto imaginava, o iogurte do jeito para o desporto não lhe tinha sido destinado.
             Quando entraram pela porta de casa de Ísis, corados e suados da corrida, Isabel e Rogério, juntamente com Margarida e Rui, estavam sentados à volta da mesa da cozinha, com duas cartas na mão.
            - Filho, esta é a tua! – exclamou Margarida, sorridente.
            - Iss, aqui tens… - disse Isabel, puxando a filha para um abraço rápido.
O início da carta era igual para os dois:
21 de Junho de 2013, Bel-Horizonte
Caros jovens de Bel-Horizonte,
Venho por este meio contactar-vos precisamente por se tratar do vosso décimo quinto aniversário, data essa que, como devem saber, é por demais importante no vosso percurso pessoal: foi acordado (no artigo nº4 do regulamento da loja de iogurtes Sousa) que cada criança deve desconhecer, até aos 15 anos de idade, os iogurtes que a sua mãe ingeriu aquando o seu nascimento, na medida em que suscitaria diversos “porquês” que, como devem ter aprendido na disciplina de “métodos de correcção de curiosidade e instabilidade I”, são deveras prejudicais a qualquer educação rígida e bem encaminhada.
Neste sentido, a partir dos quinze anos espera-se que já tenham alcançado a maturidade suficiente para encararem a vossa “iogurtização” e se conhecerem a si mesmos e à vida que daqui em diante levarão, com o máximo de tranquilidade e o mínimo de imprevistos.
Enumero agora os iogurtes de (…)”
Tinham acordado que, chegada esta parte, leriam à vez os iogurtes de cada um, começando por Eurico:
(…) Eurico Silva Aguiar: 560 gr de obediência, 570 gr de devoção a Belmiro de Sousa, 320 gr de gosto pelo trabalho e pelo dinheiro, 200 gr de paciência, 400 gr de paixão pela informática, 400 gr de conhecimento de programação, 500 gr de competência em análise de dados quantitativos, 320 gr de desinteresse por livros, pássaros, caminhadas pela praia, bicicletas, flores, cozinhados e tricô, 330 gr de ambição por uma família calma e estável, 500 gr de ódio por surpresas, 780 gr de medo de sair da cidade, 500 gr de amor para sempre.
Observações: Alergia a milho, memória extraordinária, gosto por carrinhos de coleção e posters da Audrey Hepbrun.
Cargo a ocupar: técnico informático do armazém da loja de iogurtes
Pessoa a quem está destinado: Angelina Dias Gonçalves (…)”
Íris, que ouvia, curiosa e sorridente, a leitura de Eurico, sentiu subitamente a respiração a faltar-lhe: como é que era possível?! O coração disparava-lhe no peito e pequeninas gotas de suor formavam-se junto aos cabelos desalinhados e cor-de-laranja. Obrigou-se a pensar racionalmente: certamente haveria um erro! Lembrou o caso da prima da Isaura, que havia recebido a lista aos 15 anos, onde constava expressamente o iogurte de paixão por gatos quando ela tinha pavor aos bichanos. Acabou por ter de ir à loja de iogurtes e comer outro iogurte para inverter a situação. Às vezes acontece…
Mais descansada, Iss levantou-se para começar a ler a sua carta:
“ (…) Enumero agora os iogurtes de Ísis Barbosa Duarte Ribeiro: 560 gr de obediência, 570 gr de devoção a Belmiro de Sousa, 320 gr de gosto pelo trabalho e pelo dinheiro, 200 gr de paciência, 400 gr de paixão por matemática, 500 gr de competência em análise estatística, 600 gr de desinteresse por livros, ar livre, gatos, tartes de morango e qualquer tipo de expressão artística (…)” – A voz de Iss começou a falhar e os olhos ardiam-lhe de tal forma devido às lágrimas, que estava a ter dificuldade dar seguimento à leitura. Clareou a voz e forçou-se a continuar – “(…) 330 gr de ambição por uma família calma e estável, 500 gr de ódio por surpresas, 780 gr de medo de sair da cidade e 500 gr de amor para sempre.
Observações: Gosto por mangas, casacos quentinhos e máquinas de calcular; medo de barulhos durante a noite e de avestruzes; alergia a gatos.
Cargo a ocupar: professora de Matemática na escola EB2/3 Belmiro de Sousa
Pessoa a quem está destinada: Eduardo Pinto Oliveira (…)”
Foi demasiado: grossas lágrimas iam rolando sobre o papel, borrando aqui e ali as palavras do Sr. Belmiro e tornando-as quase ilegíveis.
 “ (…) Ao longo da vossa vida terão oportunidade de adquirir muitos mais iogurtes, que podem ser comprados na loja que tão bem conhecem e que vos conhece a vocês, melhor que ninguém.
Votos para um bom aniversário.
Belmiro Sousa”
- Oh, a minha menina está emocionada! – exclamou Isabel, correndo para abraçar a filha, mais uma vez, e Ísis fez força para se libertar.
O Eduardo?! Certamente havia um engano, só podia. Ele era a pessoa mais aborrecida e sem graça que alguma vez conhecera! Matemática? Sempre detestara matemática, tanto como as couves. E como podiam esperar que odiasse livros quando eram a sua maior paixão?! Iss sentia-se tonta devido à angústia que rebentava no seu peito. Via, ao fundo da sala, Eurico à conversa com os pais, saltitando de felicidade:
- Sim mãe, é como se me tivesse a ver ao espelho num papel! Agora compreendo-me perfeitamente!
Ísis brindou com eles, forçando um sorriso, e pouco depois retirou-se para o quarto – ainda tinha algumas horas até às famílias dos dois amigos se juntarem no grande jantar, no centro da cidade, com todas as famílias dos jovens nascidos há 15 anos atrás.
Bastaram apenas alguns minutos para cair num sono profundo, com os olhos ainda salpicados de lágrimas; deixando-se vaguear num sonho estranho, no qual ela e Eduardo, sentados numa pilha de cassetes velhas, pescavam numa piscina de plástico cheia de peixes em forma de pontos de interrogação.
~
- Está a dizer-me, portanto, que não há qualquer erro na carta? – Perguntava, exasperada, enquanto trincava a ponta da trança.
- Pela terceira vez, não há qualquer erro na carta. Se volta a insistir, levar-me-á a pensar que há algo de errado consigo e terei de conduzi-la à presença do meu excelentíssimo patrão. – Respondeu severamente o senhor baixinho atrás do balcão.
 Ísis sentiu, mais uma vez, as lágrimas a formarem-se junto aos olhos e desejando educadamente o resto de um bom dia, virou as costas ao homem, balançando a longa trança ruiva com missangas na ponta. Nesse dia vestia uma camisola amarela com um papagaio gigante, e umas calças verdes, com bolsos floridos; algo que o senhor não deixou de reparar, pensando para si mesmo que escapara aquela jovem o iogurte do bom gosto.
Pelo caminho, Iss agitava nervosamente as mãos, como se debatesse interiormente sobre um assunto crucial: se não havia um erro na carta e se a sua personalidade não condizia com os iogurtes que a sua mãe havia tomado, então de onde vinham todos os seus interesses e desinteresses, todas as suas qualidades e defeitos? De onde vinha o seu gosto por gatos e por bolas de sabão, o seu carácter enérgico e bem-disposto, o seu pragmatismo em momentos de grande tensão? E pior… de onde vinha aquele sentimento agridoce, aquele nervosismo delicioso que tanto magoa como faz sorrir, aquela vontade, como dizia o Nuno Júdice, de ir mais cedo para ver chegar?! Julgara sempre que o facto de preferir subir às árvores e andar de bicicleta com Eurico do que com o resto dos rapazes (ainda que tivesse de o arrastar para fazer esse tipo de coisas) era porque estava destinada a ele desde nascença.
Mas agora que sabia que assim não era, o medo apoderara-se dela – não sabia a quem recorrer, se aos pais ou às amigas da escola, ou até mesmo ao próprio Eurico. Depois de muito pensar, resolveu-se pela última opção.
Foi a casa buscar a bicicleta e dirigiu-se, mais tranquilizada, para casa do amigo, certa que ele a compreenderia melhor que ninguém.
- Bom dia, Ísis – saudou, sorridente, Margarida, com um avental cor-de-rosa e uma colher de pau na mão, deixando cair pingas de geleia sobre o tapete de entrada. – O Eurico saiu mesmo agora, se fores rápida ainda o apanhas ao fundo da rua.
Ísis pedalou agilmente, cumprimentando as pessoas pelo caminho, até que uma visão pouco agradável a fez travar a fundo: Eurico e Angelina caminhavam lado a lado, de mãos dadas, segurando cada um gelado de cenoura e manteiga de amendoim meio comido.
- Olá Iss – cumprimentou o amigo – pensei que hoje à tarde pudéssemos ir ao cinema os quatro: eu, a Angelina, tu e o Eduardo. Ouvi falar do novo filme que estreou esta semana “Iogurtizados parte 2”, que achas?
- Eu…hmmm… acho óptimo! – Respondeu Ísis, fingindo concentrar a sua atenção num esquilo que trepava a um arbusto. – Encontramo-nos às três junto da fonte dos pombos?
- Sim, claro!
Ísis despediu-se e pedalou até casa, onde explicou aos pais o que se passava. Diga-se de passagem que não foi um momento bonito: houve gritaria, lágrimas e batidas com a porta da cozinha e até Nice, a gata, virou a cauda felpuda para a dona, quando Iss tentou fazer-lhe festas. Esse havia de ser, como se costuma dizer, o primeiro dia do resto da vida de Ísis.
~
            - Desiogurtizada! Desiogurtizada!
            Tinham passado apenas algumas semanas desde que contara aos pais o que sentia, e, aparentemente, já toda Bel-Horizonte sabia: os amigos da escola perseguiam-na, chamando-lhe nomes horríveis, puxando-lhe a trança com força e escondendo-lhe os sapatos quando ela os tirava em educação física. Os professores haviam-na colocado na última fila da sala, e sempre que falavam com ela – com uma falsa preocupação – era para lhe oferecerem iogurtes medicinais:
            - Minha querida, o que tu precisas é de um “iogurte-antibiótico contra crises identitárias e pensamentos inconvenientes”, três vezes ao dia durante uma semana, e volta tudo ao normal! – Dizia a professora Jo, pousando um frasco roxo em cima do livro “Filosofia laboral: pensando sobre os 1001 benefícios do trabalho”.
            Mas Iss já havia tomado esse e outros tantos, e nada resultava: continuava a devorar as páginas da “Alice no país das maravilhas” na biblioteca municipal. A biblioteca era um local muito feio e degradado, pois Belmiro de Sousa recusava-se a investir numa prática tão maléfica e perigosa como a leitura; o estabelecimento só ainda estava aberto devido à presença do Sr. João, que, segundo o que se ouviu dizer, tem uma fotografia muito comprometedora do Sr. Sousa na praia, com uma bóia aos patinhos. A biblioteca é aberta a todos, como é como quem diz “a biblioteca é aberta a todos que quiserem ser excluídos a pontapé de Bel-Horizonte”, por isso está sempre vazia. No entanto, de há uns anos para cá, o Sr. João abriu uma passagem secreta onde plantou um maracujazeiro para disfarçar, e umas quantas pessoas costumam juntar-se, ao fim da tarde, no clube de leitura.
            O Sr. João é um senhor com os seus 40 anos, com barba comprida e óculos redondinhos com hastes douradas. Diz-se por aí que foi mal “iogurtizado”, e por isso tem ideias estranhas sobre tudo, mas Iss considera-o excepcionalmente inteligente.
            Quando contou as dúvidas que a atormentavam a Eurico, este ficara chocado, é certo, mas não deixara de a apoiar:
            - Mas… - perguntou ele, um pouco hesitante – o que sentes ao certo?
            - Sinto-me estranha a mim mesma. Preciso de procurar-me em algum lugar que desconheço e certamente não será um papel a dar-me as respostas que preciso. – Fez uma pausa, procurando as palavras certas para se expressar – Sinto que toda a gente sabe para onde ir, excepto eu.
            - Ir onde?! – interrogou, já angustiado, o jovem Eurico, temendo pela saúde mental da amiga.
            -Precisamente! Onde?! Sei lá eu! Mas todos parecem saber, com as suas certezas absolutas, verdades inquestionáveis e futuros tão claros como água. Menos eu… - Respondeu entre lágrimas e soluços sufocados, escondendo o rosto entre as mãos.- Eu estou tão… perdida.
            E Eurico, sem saber o que fazer, estendeu os braços para ela…Alto! “Os abraços são demonstrações infantis de afeto irreflectido que devem ser apenas administrados a crianças até aos 11 anos e meio e a pessoas cujo um ente querido tenha falecido…” não tinha estudado isto ainda a semana passada para um teste de “Contenção de emoções, módulo 3”? O que diriam as pessoas que o vissem, a ele, sempre tão cumpridor, a cometer um ato de delinquência tão grave?! Então, silenciosamente, dirigiu-se à cozinha, regressando com um iogurte  amarelo que Iss levou à boca, contrafeita.
            Iss sentia-se cada vez mais sozinha: os pais haviam recuperado do choque, assim como Eurico, mas todos os restantes amigos de outrora atravessavam agora para o outro lado da rua quando ela passava e cochichavam nos corredores sob a sua presença.
            Certo dia, durante um passeio, Iss escutou uma conversa ao acaso entre o Sr. Gusto, o pescador, e uma senhora gordinha, com um vestido cor de caramelo:
            - … Uma vergonha, Sr. Gusto, uma vergonha para aqueles pais, ouça o que lhe digo! – Dizia ela, exasperada – Eu já desconfiava daquela criança! Sempre a subir ás árvores e a correr atrás dos pombos… e aquele aspeto?! Que falta de gosto. É como lhe digo, a mim nunca me enganou! Felizmente o nosso querido Belmiro de Sousa encontrou uma solução à altura, não concorda? A abertura da ala de internamento para desiogurtizados vai ser um sucesso, e a tal Ísis será a primeira a estreá-lo!
            Iss sentiu-se desfalecer, mas ainda foi a tempo de ouvir ao longe as palavras do pescador, afirmando que daria a sua melhor cana em como o Sr. João seria o segundo a ser internado.
            Mas isso nunca aconteceu, porque dias depois Iss conversava com Belmiro de Sousa, no fundo da loja de iogurtes:
            - Portanto, está a dizer-me que redescobriu subitamente o seu gosto pela matemática? – Perguntou num tom céptico o empresário, enrolando o bigode comprido.
            - Sim, confesso que nem mesmo eu estava à espera, mas quando reli o livro da sua autoria “1001 razões para estar satisfeito com a sua iogurtização” percebi que, no fundo, estava empregar uma causa perdida, pois tudo o que dizia naquela carta me estava predestinado. Compreenda, vossa excelência, que por vezes nós, adolescentes, temos atitudes menos corretas que são facilmente puníveis com um iogurte de maturidade.

            - Fico imensamente feliz com a notícia – disse Belmiro de Sousa, tentando esboçar um sorriso e acabando por fazer uma expressão ridícula com os cantos da boca arrebitados. – Espero que não volte a repetir a proeza. Agora tenho de me retirar, com (a minha) licença. 

(continua) 

(continua) 

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Loja de Iogurtes (2013) | Parte 1

Era a segunda vez que Rogério dava a volta ao carro para ir a casa: devia ter trazido o roupão azul-turquesa, e não o azul-bebé! Como é que alguém, no seu perfeito juízo, não conseguia ver essa diferença?! – Perguntara Isabel, por entre respirações ofegantes e dolorosas, no banco de trás da carrinha.
Rogério e Isabel haviam casado há três anos atrás: ele, um advogado bem-sucedido, ela uma socióloga com futuro, namoraram durante 4 anos, sem percalços a relatar, com inúmeras sessões de cinema e idas à gelataria pelo meio; até que, num dia perfeitamente normal, ele a pediu em casamento ao jantar, sem floreados nem joelho no chão, apenas um pedido, uma resposta positiva, e 46 telefonemas para familiares e amigos. Nada inesperado, nada fora dos planos, apenas o seguimento de algo previamente estipulado, a fim de evitar surpresas. Neste momento iam a caminho do hospital para o nascimento do primeiro filho – igualmente planeado.
 Ao lado de Isabel, carregando dúzias de sacos, a mãe apertava-lhe a mão com força e deixava escorregar as lágrimas de entusiasmo.
- Isabel, querida, poupa as tuas forças! Rogério, levas os iogurtes todos?
- Conferi-os três vezes, Dona São. – Respondeu o quase-papá, cuja testa estava salpicada de gotinhas de suor.
No lugar junto ao condutor, a irmã mais nova de Rogério, Clarice, espreitava curiosamente para a geleira que trazia no colo, contemplando inúmeros frasquinhos de vidro de cores diversas.
Clarice lembrava-se bem de quando, dias antes, havia entrado, com o irmão e a cunhada, pela primeira vez, na grande loja de iogurtes do Sr. Belmiro de Sousa, o homem mais rico da cidade.
~
            Belmiro de Sousa nascera e crescera na cidade de Bel-horizonte, onde, antes dele, a sua família fizera história. Ninguém sabe quando data a abertura das portas daquela loja, nem mesmo quem as fez abrir – é como se o autocolante do vidro, estilo anos 50, com um bebé a lamber a uma colher e a segurar um frasco de vidro colorido, estivesse ali desde sempre. Junto da mão esquerda do bebé, pode ler-se o nome e o slogan da loja, em letras desenhadas: “Iogurtes Sousa, um sabor para a vida”.
            Foi assim que Belmiro de Sousa a encontrou, quando aos 25 anos retomou o trabalho do pai, atrás do balcão.
            Trata-se de uma loja realmente bonita: do lado de fora, as paredes estão pintadas de rosa claro, com duas faixas azul-bebé e um tolde às ricas brancas e verdes. No vidro, o já referido autocolante é o orgulho do dono e da vizinhança, que, sempre curiosa, ainda não desistiu de tentar adivinhar quem é o bebé que posou para a foto:
- Ouça bem o que lhe digo – dizia a Dona Maria da mercearia ao padeiro - é o bisneto do Sr. Tozé dos biscates! se reparar bem no narizito do cachopo, aquela curvinha, ‘tá ver? Já a minha mãe tinha as suas suspeitas e eu sempre soube. Nunca m’enganou!
            Quem entra na loja, ouve de imediato uma campainha a avisar a chegada, mas nunca é acompanhada de um bom dia: Belmiro de Sousa não deseja bons dias a ninguém pois se a bondade de um dia é limitada, como tudo, ficaria com menos para ele. A loja é airosa e bem decorada, com prateleiras a todo o comprimento, sobre as quais assentam frascos de iogurte de tamanhos diversos e cores distintas. No canto esquerdo da loja pendem, do tecto, dois regadores com flores, e no chão um grande cesto de verga com mais frascos de iogurte. Há quadros com gatos por toda a parte, e uma foto do Avô de Belmiro em cima de uma bicicleta com cesto, transportando dúzias de frascos de “Iogurtes Sousa”. O balcão é ao fundo da loja, onde um senhor baixinho recebe as pessoas, encaminhando-as para o escritório, onde todos os dias, sem excepção, Belmiro de Sousa lê os livros das contas da loja e remexe na caixa só pelo simples prazer de tocar em dinheiro.
            Cada frasco de iogurte contém uma etiqueta com uma palavra, e todas elas remetem para uma característica de personalidade: “Impaciência”, “Obediência”, “Medo de doninhas”, “Encanto por bigodes de pontas compridas”, “Nojo de cabelos no ralo da banheira” entre muitas, muitas, mas mesmo muitas outras.
            Um viajante de terras longínquas que porventura se deparasse com esta situação, certamente ficaria desconcertado, mas passo a explicar:
Acontece que, na cidade de Bel-horizonte, as pessoas nascem como folhas em branco, sem personalidade: sempre assim foi, e sempre assim será, por qualquer razão que se desconhece, e que nunca ninguém procurou conhecer.
Reza a lenda que o primeiro dos Sousas – que nunca ninguém conheceu - resolveu um dia fechar-se no quarto com tubos de ensaio e líquidos de cores garridas, inventando assim o primeiro “Iogurte Sousa”, dando-o a beber à mulher no dia do nascimento do primeiro filho. Diz-se por aí que era um frasco com uma substância rosa-pérola, e uma etiqueta a dizer “Bondade”, e que quando cresceu, o seu filho tornou-se o maior benfeitor da cidade. Assim, o primeiro Sousa descobriu o segredo para construir personalidades numa cidade que nunca antes as tinha conhecido: até aí, as pessoas nasciam, cresciam, e morriam sem sonhos nem vontades, sem nada que as guiasse e as distinguisse dos demais, até o primeiro Sousa transformar a cidade para sempre.
No entanto, a uma dada altura, um Sousa qualquer descobriu as potencialidades mais negativas dos iogurtes da personalidade: poderia agora usá-los para ter uma população obediente, com um gosto extraordinário pelo trabalho e pelo dinheiro, poderia fazer com que trabalhassem horas a fio para ele, e a partir daí dominaria a cidade, e quiçá até o mundo!
Assim se iniciou o legado totalitário dos Sousas que, com a sua loja de iogurtes, fizeram da população de Bel-Horizonte um conjunto de pessoas pré-feitas, com ambições e vontades definidas à nascença: cada pai teria de registar o filho com algumas semanas de antecedência do nascimento na loja de Iogurtes Sousa onde, neste caso o Sr. Belmiro, definiria quais os traços que melhor se adequariam à criança.
- Ora bem – dizia Belmiro de Sousa a um pai nervoso que acabara de entrar – visto que daqui a 18 anos o Sr. Joaquim terá de reformar-se, o seu bebé será a pessoa indicada para ocupar o lugar. Terá 560 gramas de obediência, 50 gramas de simpatia, 350 gramas de vontade de lavrar a terra e 200 gramas de gosto por vacas e cavalos. A sua esposa terá também de comer o iogurte contra parasitas indesejados, vizinhas coscuvilheiras, e febres de todo o tipo. Pode também levar alguns iogurtes de medo do escuro, paixão por ananáses, amor ao trabalho, ódio a surpresas e à instabilidade e ambição por uma vida sossegada. Quanto ao par ideal, ontem veio aqui uma senhora que vai ter uma filha em breve que está destinada à produção de tartes de limão, e penso que seria uma boa opção… por isso levará o iogurte de amor á primeira vista e trataremos, mais tarde, de fazê-los cruzar-se pelo caminho. Agora tenho de me retirar, com licença.

(continua) 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

#1 (És) passos.

Só no Espaço teremos espaço.
É nos passos emprestados contra o soalho que te ouço estreitar em ti mesmo, 
sufocado entre as paredes invisíveis de uma mente ansiosa por lugares que não fecham. 
- Por pessoas que não (se) fecham. -
Até a andar da sala à cozinha pedes Espaço, 
passas, 
e o teu rasto é de quem cede ao aperto dos dias, 
de quem tem sede de abrir os braços em pleno
sem nada no qual esbarrar. 

Há sempre algo no qual esbarrar. - Conta-me o balanço cansado do teu caminhar,
E diz-me que quer ser astronauta,

ou engenheiro aeroespacial, agora que é para os melhores dos melhores. 
Só no Espaço teremos espaço - Dizes-me à passagem, sem falar. 
Escuto-o na voz dos teus pés a bater contra o chão, com esperança de que a gravidade o impeça, 
pedes, 
levem-me nas galáxias para que os meus pés não mais batam no chão. 
Mas segue o teu caminhar, com sede de Espaços e espaços, 
enquanto cedes ao aperto 
(desperto) 
de mais um dia em Terra firme.  

13 de Setembro de 2016, 12:30 
Alguém. 

sábado, 20 de agosto de 2016

36 | Insustentável peso da bagagem

Sou uma pessoa de bagagem.
Quando vou, não vou sozinha; levo comigo tanta tralha interior (e exterior, é certo) que não admira que me custe fechar a boca por um segundo que seja. Mas quando falo, repara, falo do que há em volta ou na superfície de mim, nunca do que levo cá dentro. 
Não foi a vida que me deu bagagem para os ombros, na verdade, foi sempre tão amável comigo que até parece injusto: fez-me emocionalmente leve e tornei-me pesada, apanhando coisas pelo caminho. 
Que coisas?, perguntas tu; que coisas guardo eu que pareço tão lisa a quem olha? Olha, coisas, coisas dos outros - amores que perderam, dores que fizeram por esquecer, sentimentos esquisitos que já ninguém quer, vergonhas, tristezas, também alegrias, mas angústias, medos, loucuras. E sobretudo, problemas. 
Apanho problemas como quem apanha cogumelos. 
E trago-os na mala, embrulhados em cobertores, cuido deles e faço-os meus porque, no fundo, gosto de pensar que sou complicada, que sou das malas de viagem e não das pochetes, que "tenho mundo" em mim. Todos os meus problemas, angústias e medos, todas as minhas alegrias e vitórias só existem porque os apanhei e guardei. Se os tivesse deixado quietos no chão, não seriam meus. 

A vida fez-me vazia e eu enchi-me com coisas que apanhei na rua. 
Agora sou da bagagem, como sempre quis.

Lory. 
(a minha nova personagem)

35 | Considerações sobre os olhos dos sacanas

Eu gosto dos olhos dos sacanas, mais do que dos bons samaritanos;

conquanto possam ter a mesma cor, mostram coisas tão distintas que jamais poderiam ser considerados parecidos. 
Não trazem em si promessas vagas, futuros incertos nem tão pouco juras de amor: são só olhos, sem espelhos para a alma, sem passaportes gratuitos para o lado de dentro, sem reticências, sentidos ocultos, funções intrínsecas. 
Nada. 
São apenas olhos, com coisas típicas de olhos, como meninas-do-olho e pestanas. 
Eu não gosto de tropeçar na alma de alguém à primeira vista - as almas, como as mulheres, não se querem fáceis.  
Os homens moralmente corretos, até a cerrar os olhos contra o sol, deixam escapar os poucos segredos que guardam (sim, porque as boas pessoas não são muito dadas aos segredos). 
Já os olhos dos imbecis, esses sim têm valor: têm coisas lá dentro, como todos temos, não fossem os olhos duas pequenas janelas para o interior da nossa cabeça, mas ao contrário dos bons-da-fita cujos vidros dos olhos estão tão imaculadamente limpos que conseguimos ver os pensamentos a passear de cuecas na sua intimidade, os olhos dos sacanas são como caleidoscópios coloridos e confusos que nos dão a volta à cabeça e ao estômago. 
É, eu hei sempre de preferir os príncipes desencantados com olhos caleidoscópicamente impenetráveis. 

GRACE - line 

34 | Ode às raízes

Quantas vezes mais,
amor,
olharemos as árvores de dentro de casa?

Não há nada de curioso nelas,
as raízes nascem dentro de portas,
não fora das janelas.

Quantas vezes mais,
amor,
o tapete fará de jardim?

Que há de útil nas ervas,
perguntas,
para que as estimes assim?
não há em mim e na minha afeição
mais perfeição do que num pé de jasmim?

Quantas vezes mais,
amor,
a lâmpada tomará o lugar do sol?

Não é bela a ciência oculta da eletricidade, criança?

(esperança? disseste?

não, não, criança, disse eu.

desculpa, erro meu.)

Quantas vezes mais,
amor,
quantas vezes mais,
a chuva baterá no vidro e não nos cabelos?

Que há na chuva senão água?
não pode também ela sair da torneira?

E dos olhos, de que maneira.
devia oferecer-te uma flor.

Para que quero eu uma flor?
para que servem sequer as flores?
quero antes uma casa com dois aquecedores,
e filhos pequenos
para apertar atacadores.
uma casa pequenina, sabes?
para viver com os meus amores.

Pequenina?!
e espaço para as minhas dores?
onde deitarei a minha alma chorosa?
haverá sequer espaço para plantar uma rosa?
ai rapaz!
as raízes são para a terra,
não para mim.
eu sou assim.
tente perceber,
tente.
não sou boa a cuidar de plantas,
nem tão pouco de gente.

Quantas vezes mais?

não mais, amor, não mais.

Emily Words

33 | Reflexão sobre a vida, a escrita e as orelhas

Na minha mente, a vida e a escrita são como as orelhas: existem, sem se tocar, uma em cada canto da cabeça - as orelhas por fora, a vida e a escrita por dentro - mas sem nunca se cruzarem.
Admiro quem escreve sobre a vida, quem relata factos, quem reflete sobre eles, quem escreve longos devaneios sobre a realidade das coisas reais. 
Eu não o faço, ou vivo ou escrevo, ou escrevo ou vivo, nunca as duas coisas se confundem em mim; se vivo, então toda a minha energia está na arte de viver, nada mais entra na equação. Nesses dias, não escrevo. Mas quando escrevo, então aí toda a minha energia está na arte de escrever, e não vivo.  Aí, quando a vontade de escrita ultrapassa a vontade de vida, preparo a minha mente como as pessoas preparam as casas para as tempestades: tapo os ouvidos com tábuas de madeira invisível para não deixar entrar coisas do lado de fora, monto diques em volta das ideias reais para que não molhem a minha vontade de coisas inexistentes, calço galochas que ninguém vê para poder patinhar nos sentimentos sem que me molhem os pés. 
Já dizia o Carlão, "eu não escrevo sobre o que sinto, eu sinto o que escrevo", e há nessas palavras uma verdade muito minha. Os sentimentos - reais! note-se. - não me servem de nada, são apenas os pincéis da arte de viver, e como disse, quando me concentro em viver, não se espera que escreva. 
Agora os sentimentos inventados, aqueles que não se sentem senão com a mente, ah! esses sim, são a tinta onde molho a pena para escrever. 

Sim, ou vivo ou escrevo, e aqui só para nós, todos sabem que escrevo mais do que o que vivo.

Emily Words.

32 | Aula de escrita criativa

Hoje levantei-me momentaneamente dos lugares seguros e, devagar, voltei a sentar-me. 
Há, na quietude da minha alma, qualquer coisa feita de tijolo-de-lágrima, infinitamente triste mas seguramente estável, distante do sopro da imprudência dessas coisas não pensadas, dessas paixões breves mas intensas que abalam, destroem e não voltam para erguer de novo. 
Há em mim e no meu silêncio uma vontade de permanecer nas bordas do que me é próximo e conhecido, uma necessidade de seguir, em passo lento, tranquilo, vagamente marchado, em direção a um lugar preciso, sem olhar para trás - para não vacilar. 
Mas hoje, por um momento, levantei-me, como disse, da minha forma de estar e cruzei-me comigo. Mas um comigo que não está em mim. 
Havia na alma desse meu outro eu qualquer coisa de ardente e precipitado, qualquer coisa próxima do sol de Agosto que me fez retrair e sentar de novo na minha plácida existência, controlada e outonal. 
Sim, hoje levantei-me momentaneamente dos lugares seguros e, devagar, voltei a sentar-me.

Emily Words, 
texto escrito no workshop de escrita criativa inspirado no livro "Sensibilidade e Bom Senso" da (minha muito preciosa) Jane Austen.

31 | Cabrão, em linguagem corrente

Antes demais,
ISTO não é um poema sobre um cavalheiro.
É um TEXTO,
sobre um cavalheiro,
com parágrafos nos sítios errados.

Agora vamos por partes, 'tá?

primeira.

Apareces, no teu passo definido e claramente ensaiado,
a cheirar a coisas da noite passada,
com o casaco a descair sobre os ombros largos e apetecíveis.
Porque não há nada de mais apetecível que um ombro largo. 

segunda.

Aquele trejeito com a boca.
Uma leve artimanha dos músculos, tão só.
Mas só? Como só?
Só isso chega para lançar à fogueira a consciência intata e segura de quem te vê:
Não há espaço para a consciência no espaço que ocupas.
Simples. Roubas o ar às coisas de fora.
Fazes jus ao princípio metafísico de que as coisas deixam de existir quando não pensamos nelas.
Para além de ti, não há nada mais a ver quando passas. 

Terceira.

A arrogância.
Devia afastar-me, como afasta tudo o que junto a ti não perde o bom senso.
Compra-me, por favor, um manual de iniciação prática ao bom senso na tua presença.
Bom-senso. Bomsenso. Bon-s-e-n-s-e. Para quê, pergunto eu?
E já o perco até longe de ti, só por pensar em ti, e mais uma vez: deixa de haver qualquer outra coisa.
Mas falávamos da arrogância, está certo?
É horrivelmente arrogante, Mr.
Cabrão, diz-se em linguagem corrente.
E ainda assim...
Ainda-asssssim.
Ainda
Assim ...
qualquer coisa que me esqueci de dizer.

Imagina como era curioso se me apaixonasse por ti.
Não, espera, imagina como era curioso se eu pudesse sequer apaixonar-me por ti.
Suponho que seria estranhamente agradável sofrer por alguém como tu, sabes?
Não, espera outra vez, só há um alguém como tu,
vossa excelência, meu amor,
que eu não amo.
Não sei se é por causa da profundidade dos teus

(Quarta)

olhos.
Brota deles qualquer fatalidade histórica,
qualquer "quê" de perdição de almas femininas e volumptuosas,
aquela tal qualidade de claleidóscopicismo que só se encontra nos olhos dos
grandessíssimos imbecis.
ou secalhar era da luz, e são só olhos.

Quinta

As tuas mãos.
O que eu tenho a dizer sobre as tuas mãos morreu na ponta das minhas,
que escrevem a beleza da tua sacanice em teclas pouco dignas para a receber.

Emprestei por tempo indeterminado, parece, o meu coração.
Sempre o levas, parece, no

(Sexta e última)

bolso direito da camisa.
Segredo: não é meu. Encontrei-o no chão e fiquei com ele.
Mandai-me prender por roubar corações de pedra, vá.
 

Graceline
num momento de muito sono e pouca lucidez.

30 | Pirotecnia e serenidade das almas

simplicidade dela é avassaladora, incompreensível, a meus olhos, quase que um estado selvagem da consciência, longe das complicações mudas da minha. Ela é assim, desperta para as coisas reais, indiferente aos lados de dentro, aos demónios interiores que me atormentam, a muito meu prazer. Alto, não trocaria a minha condição de virada-do-avesso por nada deste mundo: é sempre no meu desencontro que acabo por me encontrar. É sempre, escuta, é s.e.m.p.r.e através da dor que me abeiro da felicidade. Dor provocada, dor construída, dor criada, dor -essencialmente - escrita. Mas ela não, ela é assim, real, palpável, toda ela em consonância com o corpo que a define, toda ela consciente das curvas e contracurvas da sua presença. Ela dança, e quando dança é como se toda a realidade se esgotasse no seu ser, e eu...bem, eu sou o oposto, eu estorvo-me a mim mesma enquanto corpo, vulgarmente humano, cruelmente físico, estupidamente real. Eu não me sinto enquanto carne e osso, não tenho equilibrio, velocidade, controlo sobre os meus movimentos, nada - é quase como se me tivessem metido no invólucro errado e eu, passados 20 anos, ainda não aprendi a aceitá-lo.
Bem, talvez não tenha sido totalmente sincera quando disse que não trocaria a minha condição de virada-do-avesso por nada deste mundo, tem dias que me apetecia ser assim como ela, solta, leve, harmoniosa com o ambiente em seu redor.
Até nas ambições e expetativas ela é serena, espera o futuro - que é para ela tão certo como 3 e 2 serem 5 - com placidez e um meio sorriso na cara, assim semelhante à presença suave e dourada das grávidas. As minhas ambições e expetativas disparam em direções opostas, contraditórias, antagónicas - tão certas como 3 e 2 serem 2930910391930 - rodopiam na frente do presente fazem curvas perigosas no passado, saltam, rebentam, fazem barulheiras infernais na minha mente, qual espetáculo de pirotecnia que assim que termina deixa tão só uma camada de fumo cerrado, que não deixa ver nem para trás nem para a frente, e que depois me faz impressão nos olhos, justificando assim a minha choradeira aparentemente injustificável em frente a um prato de arroz de marisco. 
 Ela é assim e eu, bem, não sou assado senão seria consideravelmente mais morena (o que de resto faria as minhas graças) mas vá, a gente vai aprendendo a lidar com o que tem, se a gente não aprende, a gente finge que aprendeu.
Sim, a gente finge. 

Nem sei com que personagem assino este texto por isso vai assim, 
Mim. 

29 | A mão com que Pessoa escreve


       O que mais me fascina em si é a parte lateral da mão com que escreve. Em cada noite que se sentou na escrivaninha de madeira coçada e conduziu a pena pelo papel, a sua mão acompanhou o correr das palavras; ora lenta, com o tédio de um gato gordo e velho, ora urgente, com uma necessidade quase sobre-humana de entrar no papel.
      Esse caminhar sobre as frases, molemente angustiado, arrastou as palavras e prendeu-as na parte lateral da mão de quem as escreveu.
   A mão de um empresário, em nada me encanta; ela guarda palavras entediantes como "empreendorismo" e "sinergia"; a mão de um apaixonado vulgar, também nada me diz para além da triste condição de um amor que se esgota na sua totalidade.
Mas a sua mão, a mais sublime e grandiosa das mãos, tem nela as mais belas palavras algumas vez escritas! Na sua pele mármorea mora D.Sebastião, numa cabana de nevoeiro; nas cavidades frágeis do dedo mindinho, habita o amor da doce Ophélia, tão inocente mas tão maliciosa, que tanto dá asas como cria raízes... e junto ao pulso que se agita nervosamente, uma longa mesa, onde jantam (ruidosamente, sempre ruidosamente) Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, e tantos outros, todos os que haveis criado na sua mente e que tiveram também na sua, sempre angustiada, sempre consumida, sempre insatisfeita, mão.
      É como se tivesse uma alma com três casas: uma na mente, debaixo do chapéu de côco, outra no 1º direito da sua mão, e uma última, junto ao bolso da batina, com cheiro a tabaco e bagaço...mas do lado de dentro, junto ao coração que não bate mais.

Emilly Words.

28 | Credo

Ex mo Senhor S,
Oxalá que lhe caia uma mosca no copo sem dar por ela, que tropece ao benzer-se na missa de domingo e entorne o copo do vinho no altar, que lhe caia o monóculo numa poça de água durante um passeio com a madame e, quando se baixar para o apanhar, oxalá lhe rasgue o fato mesmo naquele sítio a sul onde as costas mudam de nome. 
Só não desejo que lhe caia um piano em cima por respeito. 

Ao piano. 

Não são ciúmes da catraia, entenda-se. Já lhe disse mais de mil vezes que não me importa a mim dividir a óstea conquanto a parte maior venha para mim.  Não me aquece nem me arrefece que ande com a moreninha de braço dado pela praça, que a exiba como uma pomba branca, com as patitas bem presas ao braço direito, não vá o dono trocá-la por uma caturra de poupa em riste.
Mas agora, seu trapaceiro, que me venha dizer que finalmente se sente amado, ai isso não! 

Eu, que me prostrei diante si com a devoção doentia de uma crente, que o adorei com o fervor de quem adora um deus, que esperei pacientemente, contida como se de tempo de quaresma se tratasse, gostando-lhe em silêncio como quem ora, para não o assustar, está certo, julgando que a sua fé era a do prazer sem amor e não o contrário. 
E eu nada dizia, sabendo-o assim insensível e descrente dos cânticos do coração, porque a bom rigor ainda pensava ser capaz de convertê-lo à minha doutrina, esperando um dia celebrar consigo o 7º sacramento. 
Lá julgava eu que além de mim, andava mais alguém a espalhar a boa nova! 
E você, seu imbecil, passava diante mim com uma indiferença quase felina, com uma altivez errante e desprendida, com desprezo de quem naquela parte de ajoelhar na igreja, não reza, apenas fecha os olhos e medita no jantar que se lhe segue; descartando o meu amor sem remorsos, sem culpa, sem pena.

E agora, de moreninha debaixo do braço, diz-se sentir amado como nunca antes. Que belo judas que me saíste! Que grandeza é a do seu amor que oculta a pureza do meu?! Haverá na sua devoção mais fervor do que na minha?! Serão as preces dela mais esperançosas? As suas certezas mais inabaláveis? A crença da sua possível absolvição, meu amor, mais vincada do que a minha?! 
Está claro que não, Senhor S.

A beatinha da sua malfada alma (atulhada com tanto pecado vil que já salta pelos olhos), a sua moreninha cândida que segundo sei o faz sentir amado, ajoelha num altar que não faz as graças da pureza do meu sentimento, e juro sobre a minha bíblia que não mais é do que o livro do dessassossego, que quando se cansar do sermão, há de vir pregar para a minha paróquia...
Ah, meu amor, hei de correr consigo com a rapidez que o diabo foge à cruz. 

Da furiosa,
Cereja. 

27 | Inquietas são

Inquietas são,
 as dores sem razão de ser.

Dizem,
os bem aventurados que sofrem por motivos,
que não há dor só pela dor,
que toda a dor tem origem, pátria e família
que toda a dor é terra cultivada,
não mais do que a dura colheita de um fruto outrora semado.
Dizem eles,
os entendidos do mapeamento de dores,
que ninguém chora só por vontade de lágrimas,
que ninguém desconhece o andar onde mora a mágoa,
e que o segredo está somente em tocar à campainha,
e pedir para baixar o volume.
"Dói-me aqui." - Dizem,
triunfantes do seu sentido de orientação,
e enumeram, explicam, teorizam,
dão causa e efeitos para as dores que têm,
medicam-se com os clichés genéricos
que logo atacam os glóbulos vermelhos dos amores não-correspondidos.

Estendem-me pastilhas tricolores na palma da mão, 
rezam slogans generalistas e,
seguros do diagonóstico, 
aconselham curas para as doenças que não são as minhas. 
"Estás triste por causa disto." Dizem,
confiantes dos meus sintomas, 
e quando digo que a minha dor é somente dor, 
dor de não saber aonde dói, 
tristeza por ela mesma, 
sem razão, sem motivos, 
dizem que não: "Não é possível."
Inquietas são as mágoas sem etiqueta, 
as angústicas sem nome, 
as tristezas sem-terra. 
Porque ninguém cura um mal sem saber do que padece, 
ninguém encontra solução sem ler o problema, 
ninguém chega ao resultado sem calcular a equação. 
Felizes dos que levam na mão o enunciado das suas desalegrias, 
e, sossegadamente, de caneta em riste, 
procuram resolvê-lo com cabeça. 
Inquietos, explosivos, insanos são os traços
 (sem projeto nem trajeto)
que vou fazendo na folha em branco que, nervosamente, 
arrasto comigo. 
Inquietação, inquietação; inquietas, são 
as dores sem formulário que, 
apesar de inquietas,
são tão ou mais reais que as reais dores dos que sabem sempre
aonde dói. 


Lory. 
13.12.13

26 | Uma breve e desencantada estória de não-amor



Numa terra junto ao mar 
nasceu um dia uma criança
que contra a vontade do pai
se chamou Conceição Maria Esperança. 

Esperança era o que não tinha, 
na sua desvairada filha, 
pois na cabeça da jovenzinha
não cabia mais que uma ervilha. 

Desde cedo foi esquecendo
onde deixava os brinquedinhos 
distraída sem remendo,
perdia-os pelos caminhos. 

Na escola aprendeu a ler
e a responder à tabuada
mas perdia as letras sem querer
e ninguém percebia nada! 

"Era uma vez a princesa -arlota" 
começava a ler Conceição, 
no meio da geral risota,
procura o "c" pelo chão. 

Nas contas de multiplicar,
esquecia sempre a cruzinha,
a professora farta de explicar: 
"Vais para o castigo sozinha!"


Assim se passaram os anos
e Conceição cada vez mais esquecia,
mas isso não estragava os planos
de vir a trabalhar numa confeitaria!

No início bem custou
pois esquecia as medidas,
mas logo um esquema engendrou
de as cozer nas saias compridas!


Assim, ao redor das saias
trazia receitas de doces sem fim
e também excertos dos Maias
para ler quando fosse ao jardim. 

Conceição era agora uma jovem senhora,
e seu pai estava preocupado
não é que nunca mais chegava a hora 
de ela ter uma namorado?!

Numa terra tão pequena
só se queria ver casamento
e a filha da dona Helena
já ia no terceiro rebento!

O pai e mãe de Conceição
temendo uma filha solteira,
quiseram abrir-lhe o coração
mesmo à sua maneira. 

Durante meses naquela casa
desfilaram bigodes e barbas,
todos a arrastar a asa
à bonita loirinha com sardas. 

Fartos da situação
foram com ela à bruxa Orácia:
"Vossa filha perdeu o coração,
não o vejo na caixa toráxica!"

O pai, fora de si,
culpava a chorosa Conceição: 
"Sua tonta, que vai ser de ti, 
ninguém ama sem coração!"

Conceição chorava sem para,
mas não pela falta do dito cujo,
porque não se pode lamentar
a falta de algo que nunca teve uso! 

Esperara sempre um grande amor,
mas nunca com muita urgência
julgava que a longa demora
se devia aos padrões de exigência. 

Mas agora sem coração, 
que iria ela fazer? 
Fingir ter afeição,
ou ficar só até morrer? 

Tristemente olhava as amigas,
com inveja e admiração, 
de amor sofrem as raparigas
de não-amor sofre Conceição. 

Procurou por toda a parte, 
debaixo do chão e no telhado,
até no meio da tarte 
(não fosse o coração ter caído)
dentro do preparado!


Nisto aparece a bruxa à porta,
Dizendo ter encontrado o coração: 
"Reconheci-o pela aorta, 
tem-no o menino Simão!"


Simão era filósofo,
cheio de dúvidas e interrogações,
foi a filosofar no supermercado 
que achou o segundo dos seus corações.


Era como um nariz de palhaço,
mas maior e palpitante, 
aconchegou-o no regaço 
e foi para casa radiante. 

A jovem sua noiva já o esperava 
com um prato de lulas e puré de batata,
mas o que ela não contava,
é que em vez de com Simão,
fosse jantar com uma Lapa! 

Nem para lavar os tachos 
 ávido amante a largava, 
prendia-lhe os cachos 
e dizia que a amava. 

No início gostava a amada 
de toda essa atenção,
mas começou a ficar cansada 
de tanta adoração. 

Sem mais aguentar, 
fugiu numa tarde abafada,
deixado o Simão a chorar 
a sua sorte malfadada. 

Se um coração partido
causa dor e faz chorar,
dois corações juntinhos 
doem a dobrar!

Foi assim triste e desamparado,
que o achou Conceição: 
"Sei que achado que não é roubado, 
mas quero de volta o coração!"

Mas já era tarde demais
para inverter a situação,
pois Simão descobrira o que fazer
com dupla dor de coração.

Se alegria não faz poesia,
fazem-na certamente as dores,
Simão poemas escrevia
todos sobre os seus amores.

Se o excesso de amor
é motivo de mágoa inspiradora,
também a ausência dele
fez de Conceição escritora!


Assim Simão foi infeliz no amor
e tal como ele, Conceição,
mas vale mais um poema,
do que uma vulgar afeição!

E chegamos pois ao fim, 
de uma história desencantada, 
para que não te aconteça assim, 
fecha teu coração numa carta lacrada!



Um conto (não como breve como o título faz crer) de

Emily Words.

25 | Des-saudade

O que fazer com a falta que não me fazes? 
Não é justo que a saudade vá embora quando há lugar para ela à mesa. 
Tenho no sótão da minha alma caixas de cartão a abarrotar de afeição oferecida, 
mas quando abro a carteira para oferecer amor
há só trevos secos e uma libra. 
Não sei lidar com a Des-Saudade, 
não sei o que fazer com a ausência-de-temer-ausência, 
não sei onde arrumar o meu desinteresse pelo meu interesse em ti.

Houve tempos em que o que sentia por ti tinha direito a moldura no centro da sala. 
Mas não mais. 
A questão não é teres partido - hipoteticamente: 
quantos não são os que (se) partem e e ficam por inteiro. 
A questão é teres levado contigo a saudade que deveria ter ficado. 

Eu não sei não sentir saudade.

Momento sincero: 
Eu.
Estou-me.
Nas.
Tintas.
Para.
Ti. 

E o que fazer com essas tintas que nem para pintar paredes servem? 
És um filho da mãe egoísta. 
As pessoas normais vão embora e despedaçam o coração de quem fica, 
deixam-lhe saudades espalhadas pela casa, 
esquecem pacotes de "fazes-me falta" no frigorífico da cozinha.


Mas tu, seu catraio insuportável, não só bateste a porta como levaste contigo a falta que me deverias fazer. 
Agora eu não sinto nada.
Como sempre. 
Nada. Nadinha. Nicles. Nothing. Niente. 
Ora, Porra. 
Eu quero a saudade a que tenho direito. 
EU EXIJO SENTIR ALGO. 

Que seja saudade. 
Que seja falta. 
Que seja Algo.

E que seja rápido. 

Ninguém não-sente saudade assim que um não-amor (não) vai embora.

O que fazer com a ausência de sentir? 
Tenho blocos de indiferença a barrar-me a entrada da dispensa da alma. 

Na minha mente nunca é dia de limpeza.
P'ra quê arrumar se no dia seguinte está suja de novo? 
Na minha mente nunca se faz a cama. 
Porque a minha mente nem tem cama: ao contrário do meu corpo, que parece nunca acordar, 
a minha mente nunca dorme. 

Haverá "Dormidina" para as almas que não dormem? 


A questão é que ao ires embora 
(e quando falo na tua partida é uma partida simbólica, não corpórea) 
deixaste cá (dentro) as tuas tralhas.
Agora,
além das minhas caixas de indiferença, 
e das minhas pilhas de "sentir-falta-de-sentir-falta", 
tenho ainda as tuas latas de carinho, as tuas caixas de amor, as tuas sacas de preocupação...
tudo aquilo para o qual 

I don't give a shit.

E que não sei onde guardar. 
Não é irónico? 
Não é irónico ter caixotes de amor até vir o chico e não poder oferecer-tos? 

Quem me dera que: 
...eu pudesse dar-te tantas caixas de amor como tu a mim.
... as minhas arcas de frieza não me barrassem a passagem para o quarto onde dorme o meu sentimento por ti. 
Dorme? 
Devia ir ver se ainda respira.
Mas nem consigo passar.
...que fosse eu em vez do Gil T.Sousa a inventar a frase "tenho pássaros nos olhos".


A culpa é minha. 
Sou uma acumuladora de emoções desprezíveis.
(e uma obsessiva compulsiva das limpezas sentimentais)
Guardo lixo e lanço fora tesouros.

Talvez tenha sido eu mesma a pôr-te porta fora. 
Mas a minha alma 
(ou o meu coração)
nem porta tem.

Quem quiser que entre pela janela.

Tu partiste. 
Hipoteticamente.
E eu não sinto falta. 
Eu não sei não sentir falta.

EU EXIJO QUE ME DEVOLVAM A MINHA CAPACIDADE DE SENTIR SAUDADE.
Já.

Para poupar nos portes, mandem no mesmo envelope a minha capacidade de sentir vontade de estudar.


FIM.

Uma espécie de coisa que parece um poema de,
Madeline.