Era a segunda vez que Rogério dava a volta
ao carro para ir a casa: devia ter trazido o roupão azul-turquesa, e não o
azul-bebé! Como é que alguém, no seu perfeito juízo, não conseguia ver essa
diferença?! – Perguntara Isabel, por entre respirações ofegantes e dolorosas,
no banco de trás da carrinha.
Rogério e Isabel haviam casado há três
anos atrás: ele, um advogado bem-sucedido, ela uma socióloga com futuro,
namoraram durante 4 anos, sem percalços a relatar, com inúmeras sessões de cinema
e idas à gelataria pelo meio; até que, num dia perfeitamente normal, ele a
pediu em casamento ao jantar, sem floreados nem joelho no chão, apenas um
pedido, uma resposta positiva, e 46 telefonemas para familiares e amigos. Nada
inesperado, nada fora dos planos, apenas o seguimento de algo previamente
estipulado, a fim de evitar surpresas. Neste momento iam a caminho do hospital
para o nascimento do primeiro filho – igualmente planeado.
Ao
lado de Isabel, carregando dúzias de sacos, a mãe apertava-lhe a mão com força
e deixava escorregar as lágrimas de entusiasmo.
- Isabel, querida, poupa as tuas forças!
Rogério, levas os iogurtes todos?
- Conferi-os três vezes, Dona São. – Respondeu
o quase-papá, cuja testa estava salpicada de gotinhas de suor.
No lugar junto ao condutor, a irmã mais
nova de Rogério, Clarice, espreitava curiosamente para a geleira que trazia no
colo, contemplando inúmeros frasquinhos de vidro de cores diversas.
Clarice lembrava-se bem de quando, dias
antes, havia entrado, com o irmão e a cunhada, pela primeira vez, na grande loja
de iogurtes do Sr. Belmiro de Sousa, o homem mais rico da cidade.
~
Belmiro
de Sousa nascera e crescera na cidade de Bel-horizonte, onde, antes dele, a sua
família fizera história. Ninguém sabe quando data a abertura das portas daquela
loja, nem mesmo quem as fez abrir – é como se o autocolante do vidro, estilo
anos 50, com um bebé a lamber a uma colher e a segurar um frasco de vidro
colorido, estivesse ali desde sempre. Junto da mão esquerda do bebé, pode ler-se
o nome e o slogan da loja, em letras
desenhadas: “Iogurtes Sousa, um sabor para a vida”.
Foi
assim que Belmiro de Sousa a encontrou, quando aos 25 anos retomou o trabalho
do pai, atrás do balcão.
Trata-se
de uma loja realmente bonita: do lado de fora, as paredes estão pintadas de
rosa claro, com duas faixas azul-bebé e um tolde às ricas brancas e verdes. No
vidro, o já referido autocolante é o orgulho do dono e da vizinhança, que,
sempre curiosa, ainda não desistiu de tentar adivinhar quem é o bebé que posou
para a foto:
- Ouça bem o que lhe digo – dizia a Dona Maria da
mercearia ao padeiro - é o bisneto do Sr. Tozé dos biscates! se reparar bem no
narizito do cachopo, aquela curvinha, ‘tá ver? Já a minha mãe tinha as suas
suspeitas e eu sempre soube. Nunca m’enganou!
Quem
entra na loja, ouve de imediato uma campainha a avisar a chegada, mas nunca é
acompanhada de um bom dia: Belmiro de Sousa não deseja bons dias a ninguém pois
se a bondade de um dia é limitada, como tudo, ficaria com menos para ele. A
loja é airosa e bem decorada, com prateleiras a todo o comprimento, sobre as
quais assentam frascos de iogurte de tamanhos diversos e cores distintas. No
canto esquerdo da loja pendem, do tecto, dois regadores com flores, e no chão
um grande cesto de verga com mais frascos de iogurte. Há quadros com gatos por
toda a parte, e uma foto do Avô de Belmiro em cima de uma bicicleta com cesto,
transportando dúzias de frascos de “Iogurtes Sousa”. O balcão é ao fundo da
loja, onde um senhor baixinho recebe as pessoas, encaminhando-as para o
escritório, onde todos os dias, sem excepção, Belmiro de Sousa lê os livros das
contas da loja e remexe na caixa só pelo simples prazer de tocar em dinheiro.
Cada frasco
de iogurte contém uma etiqueta com uma palavra, e todas elas remetem para uma
característica de personalidade: “Impaciência”, “Obediência”, “Medo de doninhas”,
“Encanto por bigodes de pontas compridas”, “Nojo de cabelos no ralo da
banheira” entre muitas, muitas, mas mesmo muitas outras.
Um
viajante de terras longínquas que porventura se deparasse com esta situação,
certamente ficaria desconcertado, mas passo a explicar:
Acontece que, na cidade de Bel-horizonte,
as pessoas nascem como folhas em branco, sem personalidade: sempre assim foi, e
sempre assim será, por qualquer razão que se desconhece, e que nunca ninguém
procurou conhecer.
Reza a lenda que o primeiro dos Sousas –
que nunca ninguém conheceu - resolveu um dia fechar-se no quarto com tubos de
ensaio e líquidos de cores garridas, inventando assim o primeiro “Iogurte Sousa”,
dando-o a beber à mulher no dia do nascimento do primeiro filho. Diz-se por aí
que era um frasco com uma substância rosa-pérola, e uma etiqueta a dizer “Bondade”,
e que quando cresceu, o seu filho tornou-se o maior benfeitor da cidade. Assim,
o primeiro Sousa descobriu o segredo para construir personalidades numa cidade
que nunca antes as tinha conhecido: até aí, as pessoas nasciam, cresciam, e
morriam sem sonhos nem vontades, sem nada que as guiasse e as distinguisse dos
demais, até o primeiro Sousa transformar a cidade para sempre.
No entanto, a uma dada altura, um Sousa
qualquer descobriu as potencialidades mais negativas dos iogurtes da
personalidade: poderia agora usá-los para ter uma população obediente, com um
gosto extraordinário pelo trabalho e pelo dinheiro, poderia fazer com que
trabalhassem horas a fio para ele, e a partir daí dominaria a cidade, e quiçá
até o mundo!
Assim se iniciou o legado totalitário dos
Sousas que, com a sua loja de iogurtes, fizeram da população de Bel-Horizonte
um conjunto de pessoas pré-feitas, com ambições e vontades definidas à
nascença: cada pai teria de registar o filho com algumas semanas de
antecedência do nascimento na loja de Iogurtes Sousa onde, neste caso o Sr.
Belmiro, definiria quais os traços que melhor se adequariam à criança.
- Ora bem – dizia Belmiro de Sousa a um
pai nervoso que acabara de entrar – visto que daqui a 18 anos o Sr. Joaquim
terá de reformar-se, o seu bebé será a pessoa indicada para ocupar o lugar. Terá
560 gramas de obediência, 50 gramas de simpatia, 350 gramas de vontade de
lavrar a terra e 200 gramas de gosto por vacas e cavalos. A sua esposa terá
também de comer o iogurte contra parasitas indesejados, vizinhas
coscuvilheiras, e febres de todo o tipo. Pode também levar alguns iogurtes de
medo do escuro, paixão por ananáses, amor ao trabalho, ódio a surpresas e à
instabilidade e ambição por uma vida sossegada. Quanto ao par ideal, ontem veio
aqui uma senhora que vai ter uma filha em breve que está destinada à produção
de tartes de limão, e penso que seria uma boa opção… por isso levará o iogurte
de amor á primeira vista e trataremos, mais tarde, de fazê-los cruzar-se pelo
caminho. Agora tenho de me retirar, com licença.
(continua)
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