sábado, 22 de outubro de 2016

Loja de Iogurtes (2013) | Parte 2


            - ROGÉRIO, É AGORA! TRAZ A MÁQUINA!
            Quem, porventura, entrasse no quarto de hospital naquele momento, iria ri-se da situação: Isabel contorcida de dores, com uma bata florida, estava sentada numa mesa comprida com dezenas de iogurtes cheios de cores e com uma colher na mão.
            - Sorri! – Pediu Rogério, inchado de orgulho.
            E Isabel meteu a colher à boca, saboreando a o primeiro de muitos iogurtes que tinha pela frente, e cruzou os dedos para que a sua pequena Ísis viesse ao mundo o mais rápido possível. Na sala ao lado, uma outra mãe, com uma bata igualmente florida e uma cara igualmente de sofrimento, pegava no último dos iogurtes, cruzando também os dedos por baixo da mesa, desejando com força a maior das felicidades para o filho Eurico.
~
            Quinze anos mais tarde, uma rapariga de uma palidez marmórea, cujo rosto estava salpicado de pequenas sardas, endireitava a sua longa trança ruiva – que lhe chegava à parte de trás dos joelhos! – utilizando o vidro de um carro como espelho.
            - Eurico, se não esperas por mim juro que vomito o iogurte da paciência e parto-te um dente. – informou calmamente a jovem Íris, voltando os olhos amarelados em direcção ao amigo, que batia o pé nervosamente no muro da escola. Ele era extraordinariamente alto, um tanto quanto desengonçado, com o cabelo desalinhado e uns óculos de massa vermelha.
            - Sinceramente, Iss, cada vez tenho mais certeza que a tua mãe cuspiu algumas gramas de Sousa para debaixo da mesa do hospital, principalmente no que respeita à simpatia. Além disso, não me parece que a paciência tenha sido escolhida para ti…
            Mas Iss já não o ouvia, corria desvairadamente em direcção a casa, deixando o seu vestido rodado esvoaçar ao vento, de tal forma que Eurico teve de levar as mãos aos olhos para não ver as cuecas amarelas que a amiga levava. Pegando na mala de couro oferecida pelo pai, Eurico correu atrás dela, um pouco desequilibrado, pois tanto quanto imaginava, o iogurte do jeito para o desporto não lhe tinha sido destinado.
             Quando entraram pela porta de casa de Ísis, corados e suados da corrida, Isabel e Rogério, juntamente com Margarida e Rui, estavam sentados à volta da mesa da cozinha, com duas cartas na mão.
            - Filho, esta é a tua! – exclamou Margarida, sorridente.
            - Iss, aqui tens… - disse Isabel, puxando a filha para um abraço rápido.
O início da carta era igual para os dois:
21 de Junho de 2013, Bel-Horizonte
Caros jovens de Bel-Horizonte,
Venho por este meio contactar-vos precisamente por se tratar do vosso décimo quinto aniversário, data essa que, como devem saber, é por demais importante no vosso percurso pessoal: foi acordado (no artigo nº4 do regulamento da loja de iogurtes Sousa) que cada criança deve desconhecer, até aos 15 anos de idade, os iogurtes que a sua mãe ingeriu aquando o seu nascimento, na medida em que suscitaria diversos “porquês” que, como devem ter aprendido na disciplina de “métodos de correcção de curiosidade e instabilidade I”, são deveras prejudicais a qualquer educação rígida e bem encaminhada.
Neste sentido, a partir dos quinze anos espera-se que já tenham alcançado a maturidade suficiente para encararem a vossa “iogurtização” e se conhecerem a si mesmos e à vida que daqui em diante levarão, com o máximo de tranquilidade e o mínimo de imprevistos.
Enumero agora os iogurtes de (…)”
Tinham acordado que, chegada esta parte, leriam à vez os iogurtes de cada um, começando por Eurico:
(…) Eurico Silva Aguiar: 560 gr de obediência, 570 gr de devoção a Belmiro de Sousa, 320 gr de gosto pelo trabalho e pelo dinheiro, 200 gr de paciência, 400 gr de paixão pela informática, 400 gr de conhecimento de programação, 500 gr de competência em análise de dados quantitativos, 320 gr de desinteresse por livros, pássaros, caminhadas pela praia, bicicletas, flores, cozinhados e tricô, 330 gr de ambição por uma família calma e estável, 500 gr de ódio por surpresas, 780 gr de medo de sair da cidade, 500 gr de amor para sempre.
Observações: Alergia a milho, memória extraordinária, gosto por carrinhos de coleção e posters da Audrey Hepbrun.
Cargo a ocupar: técnico informático do armazém da loja de iogurtes
Pessoa a quem está destinado: Angelina Dias Gonçalves (…)”
Íris, que ouvia, curiosa e sorridente, a leitura de Eurico, sentiu subitamente a respiração a faltar-lhe: como é que era possível?! O coração disparava-lhe no peito e pequeninas gotas de suor formavam-se junto aos cabelos desalinhados e cor-de-laranja. Obrigou-se a pensar racionalmente: certamente haveria um erro! Lembrou o caso da prima da Isaura, que havia recebido a lista aos 15 anos, onde constava expressamente o iogurte de paixão por gatos quando ela tinha pavor aos bichanos. Acabou por ter de ir à loja de iogurtes e comer outro iogurte para inverter a situação. Às vezes acontece…
Mais descansada, Iss levantou-se para começar a ler a sua carta:
“ (…) Enumero agora os iogurtes de Ísis Barbosa Duarte Ribeiro: 560 gr de obediência, 570 gr de devoção a Belmiro de Sousa, 320 gr de gosto pelo trabalho e pelo dinheiro, 200 gr de paciência, 400 gr de paixão por matemática, 500 gr de competência em análise estatística, 600 gr de desinteresse por livros, ar livre, gatos, tartes de morango e qualquer tipo de expressão artística (…)” – A voz de Iss começou a falhar e os olhos ardiam-lhe de tal forma devido às lágrimas, que estava a ter dificuldade dar seguimento à leitura. Clareou a voz e forçou-se a continuar – “(…) 330 gr de ambição por uma família calma e estável, 500 gr de ódio por surpresas, 780 gr de medo de sair da cidade e 500 gr de amor para sempre.
Observações: Gosto por mangas, casacos quentinhos e máquinas de calcular; medo de barulhos durante a noite e de avestruzes; alergia a gatos.
Cargo a ocupar: professora de Matemática na escola EB2/3 Belmiro de Sousa
Pessoa a quem está destinada: Eduardo Pinto Oliveira (…)”
Foi demasiado: grossas lágrimas iam rolando sobre o papel, borrando aqui e ali as palavras do Sr. Belmiro e tornando-as quase ilegíveis.
 “ (…) Ao longo da vossa vida terão oportunidade de adquirir muitos mais iogurtes, que podem ser comprados na loja que tão bem conhecem e que vos conhece a vocês, melhor que ninguém.
Votos para um bom aniversário.
Belmiro Sousa”
- Oh, a minha menina está emocionada! – exclamou Isabel, correndo para abraçar a filha, mais uma vez, e Ísis fez força para se libertar.
O Eduardo?! Certamente havia um engano, só podia. Ele era a pessoa mais aborrecida e sem graça que alguma vez conhecera! Matemática? Sempre detestara matemática, tanto como as couves. E como podiam esperar que odiasse livros quando eram a sua maior paixão?! Iss sentia-se tonta devido à angústia que rebentava no seu peito. Via, ao fundo da sala, Eurico à conversa com os pais, saltitando de felicidade:
- Sim mãe, é como se me tivesse a ver ao espelho num papel! Agora compreendo-me perfeitamente!
Ísis brindou com eles, forçando um sorriso, e pouco depois retirou-se para o quarto – ainda tinha algumas horas até às famílias dos dois amigos se juntarem no grande jantar, no centro da cidade, com todas as famílias dos jovens nascidos há 15 anos atrás.
Bastaram apenas alguns minutos para cair num sono profundo, com os olhos ainda salpicados de lágrimas; deixando-se vaguear num sonho estranho, no qual ela e Eduardo, sentados numa pilha de cassetes velhas, pescavam numa piscina de plástico cheia de peixes em forma de pontos de interrogação.
~
- Está a dizer-me, portanto, que não há qualquer erro na carta? – Perguntava, exasperada, enquanto trincava a ponta da trança.
- Pela terceira vez, não há qualquer erro na carta. Se volta a insistir, levar-me-á a pensar que há algo de errado consigo e terei de conduzi-la à presença do meu excelentíssimo patrão. – Respondeu severamente o senhor baixinho atrás do balcão.
 Ísis sentiu, mais uma vez, as lágrimas a formarem-se junto aos olhos e desejando educadamente o resto de um bom dia, virou as costas ao homem, balançando a longa trança ruiva com missangas na ponta. Nesse dia vestia uma camisola amarela com um papagaio gigante, e umas calças verdes, com bolsos floridos; algo que o senhor não deixou de reparar, pensando para si mesmo que escapara aquela jovem o iogurte do bom gosto.
Pelo caminho, Iss agitava nervosamente as mãos, como se debatesse interiormente sobre um assunto crucial: se não havia um erro na carta e se a sua personalidade não condizia com os iogurtes que a sua mãe havia tomado, então de onde vinham todos os seus interesses e desinteresses, todas as suas qualidades e defeitos? De onde vinha o seu gosto por gatos e por bolas de sabão, o seu carácter enérgico e bem-disposto, o seu pragmatismo em momentos de grande tensão? E pior… de onde vinha aquele sentimento agridoce, aquele nervosismo delicioso que tanto magoa como faz sorrir, aquela vontade, como dizia o Nuno Júdice, de ir mais cedo para ver chegar?! Julgara sempre que o facto de preferir subir às árvores e andar de bicicleta com Eurico do que com o resto dos rapazes (ainda que tivesse de o arrastar para fazer esse tipo de coisas) era porque estava destinada a ele desde nascença.
Mas agora que sabia que assim não era, o medo apoderara-se dela – não sabia a quem recorrer, se aos pais ou às amigas da escola, ou até mesmo ao próprio Eurico. Depois de muito pensar, resolveu-se pela última opção.
Foi a casa buscar a bicicleta e dirigiu-se, mais tranquilizada, para casa do amigo, certa que ele a compreenderia melhor que ninguém.
- Bom dia, Ísis – saudou, sorridente, Margarida, com um avental cor-de-rosa e uma colher de pau na mão, deixando cair pingas de geleia sobre o tapete de entrada. – O Eurico saiu mesmo agora, se fores rápida ainda o apanhas ao fundo da rua.
Ísis pedalou agilmente, cumprimentando as pessoas pelo caminho, até que uma visão pouco agradável a fez travar a fundo: Eurico e Angelina caminhavam lado a lado, de mãos dadas, segurando cada um gelado de cenoura e manteiga de amendoim meio comido.
- Olá Iss – cumprimentou o amigo – pensei que hoje à tarde pudéssemos ir ao cinema os quatro: eu, a Angelina, tu e o Eduardo. Ouvi falar do novo filme que estreou esta semana “Iogurtizados parte 2”, que achas?
- Eu…hmmm… acho óptimo! – Respondeu Ísis, fingindo concentrar a sua atenção num esquilo que trepava a um arbusto. – Encontramo-nos às três junto da fonte dos pombos?
- Sim, claro!
Ísis despediu-se e pedalou até casa, onde explicou aos pais o que se passava. Diga-se de passagem que não foi um momento bonito: houve gritaria, lágrimas e batidas com a porta da cozinha e até Nice, a gata, virou a cauda felpuda para a dona, quando Iss tentou fazer-lhe festas. Esse havia de ser, como se costuma dizer, o primeiro dia do resto da vida de Ísis.
~
            - Desiogurtizada! Desiogurtizada!
            Tinham passado apenas algumas semanas desde que contara aos pais o que sentia, e, aparentemente, já toda Bel-Horizonte sabia: os amigos da escola perseguiam-na, chamando-lhe nomes horríveis, puxando-lhe a trança com força e escondendo-lhe os sapatos quando ela os tirava em educação física. Os professores haviam-na colocado na última fila da sala, e sempre que falavam com ela – com uma falsa preocupação – era para lhe oferecerem iogurtes medicinais:
            - Minha querida, o que tu precisas é de um “iogurte-antibiótico contra crises identitárias e pensamentos inconvenientes”, três vezes ao dia durante uma semana, e volta tudo ao normal! – Dizia a professora Jo, pousando um frasco roxo em cima do livro “Filosofia laboral: pensando sobre os 1001 benefícios do trabalho”.
            Mas Iss já havia tomado esse e outros tantos, e nada resultava: continuava a devorar as páginas da “Alice no país das maravilhas” na biblioteca municipal. A biblioteca era um local muito feio e degradado, pois Belmiro de Sousa recusava-se a investir numa prática tão maléfica e perigosa como a leitura; o estabelecimento só ainda estava aberto devido à presença do Sr. João, que, segundo o que se ouviu dizer, tem uma fotografia muito comprometedora do Sr. Sousa na praia, com uma bóia aos patinhos. A biblioteca é aberta a todos, como é como quem diz “a biblioteca é aberta a todos que quiserem ser excluídos a pontapé de Bel-Horizonte”, por isso está sempre vazia. No entanto, de há uns anos para cá, o Sr. João abriu uma passagem secreta onde plantou um maracujazeiro para disfarçar, e umas quantas pessoas costumam juntar-se, ao fim da tarde, no clube de leitura.
            O Sr. João é um senhor com os seus 40 anos, com barba comprida e óculos redondinhos com hastes douradas. Diz-se por aí que foi mal “iogurtizado”, e por isso tem ideias estranhas sobre tudo, mas Iss considera-o excepcionalmente inteligente.
            Quando contou as dúvidas que a atormentavam a Eurico, este ficara chocado, é certo, mas não deixara de a apoiar:
            - Mas… - perguntou ele, um pouco hesitante – o que sentes ao certo?
            - Sinto-me estranha a mim mesma. Preciso de procurar-me em algum lugar que desconheço e certamente não será um papel a dar-me as respostas que preciso. – Fez uma pausa, procurando as palavras certas para se expressar – Sinto que toda a gente sabe para onde ir, excepto eu.
            - Ir onde?! – interrogou, já angustiado, o jovem Eurico, temendo pela saúde mental da amiga.
            -Precisamente! Onde?! Sei lá eu! Mas todos parecem saber, com as suas certezas absolutas, verdades inquestionáveis e futuros tão claros como água. Menos eu… - Respondeu entre lágrimas e soluços sufocados, escondendo o rosto entre as mãos.- Eu estou tão… perdida.
            E Eurico, sem saber o que fazer, estendeu os braços para ela…Alto! “Os abraços são demonstrações infantis de afeto irreflectido que devem ser apenas administrados a crianças até aos 11 anos e meio e a pessoas cujo um ente querido tenha falecido…” não tinha estudado isto ainda a semana passada para um teste de “Contenção de emoções, módulo 3”? O que diriam as pessoas que o vissem, a ele, sempre tão cumpridor, a cometer um ato de delinquência tão grave?! Então, silenciosamente, dirigiu-se à cozinha, regressando com um iogurte  amarelo que Iss levou à boca, contrafeita.
            Iss sentia-se cada vez mais sozinha: os pais haviam recuperado do choque, assim como Eurico, mas todos os restantes amigos de outrora atravessavam agora para o outro lado da rua quando ela passava e cochichavam nos corredores sob a sua presença.
            Certo dia, durante um passeio, Iss escutou uma conversa ao acaso entre o Sr. Gusto, o pescador, e uma senhora gordinha, com um vestido cor de caramelo:
            - … Uma vergonha, Sr. Gusto, uma vergonha para aqueles pais, ouça o que lhe digo! – Dizia ela, exasperada – Eu já desconfiava daquela criança! Sempre a subir ás árvores e a correr atrás dos pombos… e aquele aspeto?! Que falta de gosto. É como lhe digo, a mim nunca me enganou! Felizmente o nosso querido Belmiro de Sousa encontrou uma solução à altura, não concorda? A abertura da ala de internamento para desiogurtizados vai ser um sucesso, e a tal Ísis será a primeira a estreá-lo!
            Iss sentiu-se desfalecer, mas ainda foi a tempo de ouvir ao longe as palavras do pescador, afirmando que daria a sua melhor cana em como o Sr. João seria o segundo a ser internado.
            Mas isso nunca aconteceu, porque dias depois Iss conversava com Belmiro de Sousa, no fundo da loja de iogurtes:
            - Portanto, está a dizer-me que redescobriu subitamente o seu gosto pela matemática? – Perguntou num tom céptico o empresário, enrolando o bigode comprido.
            - Sim, confesso que nem mesmo eu estava à espera, mas quando reli o livro da sua autoria “1001 razões para estar satisfeito com a sua iogurtização” percebi que, no fundo, estava empregar uma causa perdida, pois tudo o que dizia naquela carta me estava predestinado. Compreenda, vossa excelência, que por vezes nós, adolescentes, temos atitudes menos corretas que são facilmente puníveis com um iogurte de maturidade.

            - Fico imensamente feliz com a notícia – disse Belmiro de Sousa, tentando esboçar um sorriso e acabando por fazer uma expressão ridícula com os cantos da boca arrebitados. – Espero que não volte a repetir a proeza. Agora tenho de me retirar, com (a minha) licença. 

(continua) 

(continua) 

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